Como
é de conhecimento de todos, considerando o grande espaço oferecido pela mídia
à questão, nosso Estado apresenta a impressionante marca de quarenta e nove
esportistas, em sua maioria surfistas, que perderam a vida presos a redes de
cabo fixo instaladas no mar, desde o ano de 1983. Não há engano: quase meia
centena de vidas ceifadas por instrumentos antiquados de pesca, em local de uso
comum do povo, e que, na quase totalidade dos incidentes, não estavam
identificados, nem cadastrados, nem sinalizados – nem as redes, nem as áreas de
pesca. Mais gravemente ainda, não são poucas as mortes de surfistas por redes
de pesca instaladas em áreas destinadas ao lazer e ao surfe. A todas as famílias
das vítimas, resta somente a dor e a luta para que as tragédias não se repitam
com mais pessoas. Buscar a
responsabilização de quem causou as mortes é impossível: as redes não têm dono.
Não, pelo menos, nas horas trágicas. Essa é uma revoltante série de homicídios
sem autor, e, por consequência, sem hipótese de responsabilização. Sem justiça.
A
Legislação Estadual, contudo e paradoxalmente, não deixa de regular o tema da
demarcação das áreas de pesca e surfe. A lei nº 8676, já em 1988, determinou a
obrigatoriedade de demarcação das áreas de pesca, lazer ou recreação, nos municípios
com orla marítima, lacustre ou fluvial. Em 13 de janeiro de 2011, pouco mais de
dois meses após a morte de Thiago Rufatto, e certamente com influência decisiva
do clamor gerado por esse incidente, foi publicada a Lei nº 13.660, que alterou
a lei nº 8676, estendendo as áreas de surf para, no mínimo, 2.100 metros. A
nova lei também prevê que, quando as condições meteorológicas não forem
recomendadas para a prática do surf, a Defesa Civil do Estado prestará
informações pelos meios de comunicação. E, por fim, e quiçá mais importante, o
parágrafo 5º do art. 1º da lei 13.660 estabelece, verbis: § 5º - Caberá aos
órgãos públicos competentes a sinalização das áreas referidas no “caput” deste
artigo.”.
Diante desses fatos, e tendo em vista o imensurável valor de uma vida humana, nós, do
Instituto Thiago Rufatto, consideramos o seguinte sobre a peça publicitária
abaixo, instalada na RS-389, a Estrada do Mar:
- A frase “Surfista, não invada a área de pesca” ficaria bem melhor contextualizada se as
áreas de pesca fossem efetivamente demarcadas, se houvesse um padrão de
sinalização, se a fiscalização atuasse de maneira proativa ao invés de somente
atender a chamados dos cidadãos, e, se as redes fossem identificadas quanto à
sua localização e quanto a seus proprietários, o que demonstraria o mínimo de
organização da atividade de pesca em âmbito estadual, deixando de tolerar a
instalação constante e inadvertida de literais armadilhas humanas.
- A colocação de uma
rede de pesca na peça publicitária constitui, mesmo que não fosse essa a
intenção dos criadores, um verdadeiro escárnio a 49 famílias e inúmeros outros
cidadãos que perderam parentes ou amigos de forma absurda. Se o propósito da
peça era criar consciência, acreditamos que havia outras maneiras até mais
veementes que não requereriam uma referência tão crua à pesca de seres humanos,
especialmente em uma campanha de autoria do Governo do Estado do Rio Grande do
Sul. Não estamos entrando no mérito técnico de elaboração das peças, mas, como
cidadãos que pagam impostos, conhecem seus deveres e têm direitos, sentimo-nos
extremamente desrespeitados diante de tal inversão da realidade com a chancela
do Estado.
Mesmo
considerando a vulnerabilidade indescritivelmente maior dos surfistas às redes do
que das redes aos surfistas, nosso protesto não reside somente aí. Esta luta
não é nem pode ser entre chimangos e maragatos. É do desenvolvimento contra o
atraso. Entretanto, temos plena consciência de que a pesca com redes de cabo fixo faz parte de uma
tradição regional. Por isso, nossas manifestações são reiteradas em dois
sentidos:
a) Que haja o maior
nível de segurança possível dentro das condições atuais (ainda com as
redes de cabo fixo) para estancar a ocorrência de tragédias.
b) Que,
simultaneamente às medidas do item anterior, exista uma real e ágil política
pública de transição da prática atual para outros métodos de pesca que sejam
mais modernos e rentáveis a quem depende deles para viver, e, fundamentalmente,
mais seguros à população e aos praticantes de esportes no mar, sem a menor
possibilidade de causar mortes como presentemente ocorre. Dessa forma, ao invés
de fomentar, em uma manifestação publicitária, o antagonismo entre surfistas e
pescadores que usam as antiquadas redes atuais, o Governo tem por obrigação,
antes de transmitir a mensagem do outdoor, proporcionar e exigir dos municípios,
primeiramente, sinalização e fiscalização efetivas, padronizada e condizente
com o perigo que se apresenta, e, numa perspectiva de realmente resolver a
questão, incentivar pesquisa e investimento em formas alternativas de pesca aos
métodos atualmente empregados no Rio Grande do Sul. Uma simples pesquisa na
internet pela palavra “aquicultura” (popularmente “fazenda de peixes à
beira-mar”) demonstra que nosso ideal de eliminação definitiva das redes não
busca, em momento nenhum, impedir o sustento dos pescadores, mas sim que haja
esforços definitivos para qualificar sua atividade, gerando segurança e
desenvolvimento para todos os cidadãos que usufruem do mar.
Portanto,
se é verdade que a peça publicitária aqui discutida demonstra, sob certo
aspecto, preocupação do Estado com a questão das redes, o que também pudemos
perceber durante a Operação Golfinho desta temporada, está clarividente a falta
de compreensão dos outros muitos aspectos da gravíssima situação da tutela
estatal da atividade de pesca com redes de cabo fixo, a quase inexistência de
sinalização e a absurda falta de fiscalização, sem esquecer, ainda, da falta de
investimento em formas alternativas de pesca aos métodos atualmente empregados,
que traria fim a essa série de perdas, proporcionaria maior desenvolvimento
econômico e social, e pela qual nossa luta persistirá até que o objetivo seja
atingido.
Texto desenvolvido por componentes do Instituto Thiago Rufatto.
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