quinta-feira, 29 de março de 2012

Surfista, não invada a área de pesca!?!?


Como é de conhecimento de todos, considerando o grande espaço oferecido pela mídia à questão, nosso Estado apresenta a impressionante marca de quarenta e nove esportistas, em sua maioria surfistas, que perderam a vida presos a redes de cabo fixo instaladas no mar, desde o ano de 1983. Não há engano: quase meia centena de vidas ceifadas por instrumentos antiquados de pesca, em local de uso comum do povo, e que, na quase totalidade dos incidentes, não estavam identificados, nem cadastrados, nem sinalizados – nem as redes, nem as áreas de pesca. Mais gravemente ainda, não são poucas as mortes de surfistas por redes de pesca instaladas em áreas destinadas ao lazer e ao surfe. A todas as famílias das vítimas, resta somente a dor e a luta para que as tragédias não se repitam com mais pessoas. Buscar a responsabilização de quem causou as mortes é impossível: as redes não têm dono. Não, pelo menos, nas horas trágicas. Essa é uma revoltante série de homicídios sem autor, e, por consequência, sem hipótese de responsabilização. Sem justiça.

A Legislação Estadual, contudo e paradoxalmente, não deixa de regular o tema da demarcação das áreas de pesca e surfe. A lei nº 8676, já em 1988, determinou a obrigatoriedade de demarcação das áreas de pesca, lazer ou recreação, nos municípios com orla marítima, lacustre ou fluvial. Em 13 de janeiro de 2011, pouco mais de dois meses após a morte de Thiago Rufatto, e certamente com influência decisiva do clamor gerado por esse incidente, foi publicada a Lei nº 13.660, que alterou a lei nº 8676, estendendo as áreas de surf para, no mínimo, 2.100 metros. A nova lei também prevê que, quando as condições meteorológicas não forem recomendadas para a prática do surf, a Defesa Civil do Estado prestará informações pelos meios de comunicação. E, por fim, e quiçá mais importante, o parágrafo 5º do art. 1º da lei 13.660 estabelece, verbis: § 5º - Caberá aos órgãos públicos competentes a sinalização das áreas referidas no “caput” deste artigo.”.

Diante desses fatos, e tendo em vista o imensurável valor de uma vida humana, nós, do Instituto Thiago Rufatto, consideramos o seguinte sobre a peça publicitária abaixo, instalada na RS-389, a Estrada do Mar:


  - A frase “Surfista, não invada a área de pesca” ficaria bem melhor contextualizada se as áreas de pesca fossem efetivamente demarcadas, se houvesse um padrão de sinalização, se a fiscalização atuasse de maneira proativa ao invés de somente atender a chamados dos cidadãos, e, se as redes fossem identificadas quanto à sua localização e quanto a seus proprietários, o que demonstraria o mínimo de organização da atividade de pesca em âmbito estadual, deixando de tolerar a instalação constante e inadvertida de literais armadilhas humanas.

- A colocação de uma rede de pesca na peça publicitária constitui, mesmo que não fosse essa a intenção dos criadores, um verdadeiro escárnio a 49 famílias e inúmeros outros cidadãos que perderam parentes ou amigos de forma absurda. Se o propósito da peça era criar consciência, acreditamos que havia outras maneiras até mais veementes que não requereriam uma referência tão crua à pesca de seres humanos, especialmente em uma campanha de autoria do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Não estamos entrando no mérito técnico de elaboração das peças, mas, como cidadãos que pagam impostos, conhecem seus deveres e têm direitos, sentimo-nos extremamente desrespeitados diante de tal inversão da realidade com a chancela do Estado.

Mesmo considerando a vulnerabilidade indescritivelmente maior dos surfistas às redes do que das redes aos surfistas, nosso protesto não reside somente aí. Esta luta não é nem pode ser entre chimangos e maragatos. É do desenvolvimento contra o atraso. Entretanto, temos plena consciência de que a pesca      com redes de cabo fixo faz parte de uma tradição regional. Por isso, nossas manifestações são reiteradas em dois sentidos:

a) Que haja o maior nível de segurança possível dentro das condições atuais (ainda com as redes de cabo fixo) para estancar a ocorrência de tragédias.

b) Que, simultaneamente às medidas do item anterior, exista uma real e ágil política pública de transição da prática atual para outros métodos de pesca que sejam mais modernos e rentáveis a quem depende deles para viver, e, fundamentalmente, mais seguros à população e aos praticantes de esportes no mar, sem a menor possibilidade de causar mortes como presentemente ocorre. Dessa forma, ao invés de fomentar, em uma manifestação publicitária, o antagonismo entre surfistas e pescadores que usam as antiquadas redes atuais, o Governo tem por obrigação, antes de transmitir a mensagem do outdoor, proporcionar e exigir dos municípios, primeiramente, sinalização e fiscalização efetivas, padronizada e condizente com o perigo que se apresenta, e, numa perspectiva de realmente resolver a questão, incentivar pesquisa e investimento em formas alternativas de pesca aos métodos atualmente empregados no Rio Grande do Sul. Uma simples pesquisa na internet pela palavra “aquicultura” (popularmente “fazenda de peixes à beira-mar”) demonstra que nosso ideal de eliminação definitiva das redes não busca, em momento nenhum, impedir o sustento dos pescadores, mas sim que haja esforços definitivos para qualificar sua atividade, gerando segurança e desenvolvimento para todos os cidadãos que usufruem do mar.

Portanto, se é verdade que a peça publicitária aqui discutida demonstra, sob certo aspecto, preocupação do Estado com a questão das redes, o que também pudemos perceber durante a Operação Golfinho desta temporada, está clarividente a falta de compreensão dos outros muitos aspectos da gravíssima situação da tutela estatal da atividade de pesca com redes de cabo fixo, a quase inexistência de sinalização e a absurda falta de fiscalização, sem esquecer, ainda, da falta de investimento em formas alternativas de pesca aos métodos atualmente empregados, que traria fim a essa série de perdas, proporcionaria maior desenvolvimento econômico e social, e pela qual nossa luta persistirá até que o objetivo seja atingido.

Texto desenvolvido por componentes do Instituto Thiago Rufatto.

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